terça-feira, 3 de setembro de 2013

Lar IX

    Existe uma lei que obriga o uso de cadeirinhas para crianças nos carros. Tem toda uma formalidade: altura, idade, tamanho. No entanto, muito antes disso, eu usava um meio de transporte muito comum no interior: o bom e velho jumento. Sim, o jumento. Nada de leis nem cadeiras, apenas um caçuá* bem aprumado e lá estava o perfeito carrinho de bebê. A criança era enrolada e colocada dentro do caçuar, ficava meio em pé e ia curtindo a paisagem no sobe e desce do andado do jumentinho.
    Uma vez, minha família estava voltando da casa dos meus avós, no pé da serra. Nessa época, eu tinha uns 4 anos. Minha mãe me colocou no caçuá e do outro lado colocou várias cestas de beijus**  - que NÃO é a mesma coisa de tapioca. O jumento seguia sua viagem feliz subindo a íngreme serra. Na verdade, eu tenho pena hoje. Coitado. No entanto, no meio da viagem, nós avistamos uma manada. Apesar de a minha família morar em um sítio, o pânico tomou conta de nós inclusive do jumento. Lá foi o bicho se estrebuchando e caindo no chão - e eu junto. Lá foi rolando no chão menina, beiju, rapadura, milho, feijão. A desgraça fez-se. Até que os bois passaram e minha mãe veio me segurar pois eu não parava de chorar, do susto claro, pois protegida pelo caçuá, saí sem nenhum arranhão. 

** beiju

sábado, 3 de agosto de 2013

Lar VIII

    8º semestre da faculdade e eis que vejo a seguinte questão na minha prova: "contar um episódio feliz em sua vida". Li umas duas vezes para ver se sinta entendido direito. Depois me pus a pensar  que momento feliz seria esse. A minha vida estava numa fase tão difícil que, acreditem, demorei um pouco para lembrar de uma história, até que lembrei de uma situação e descrevi assim:

    "Quando eu e meus três irmão éramos crianças, uma das coisas mais legais que fazíamos era contar as moedas que o meu pai trazia todos os dias. [Isso era interessante porque sempre havia uma recompensa]. A divisão era sempre a mesma: 10 centavos para os mais novos[incluindo eu] e 50 centavos para o mais velho. Todos os dias meu pai chegava e colocava muitas moedas na mesa. Corríamos para contar.
    Uma vez, o meu irmão mais velho saíra e eu e meus outros irmãos esperávamos nosso pai na porta. Quando ele chegou, ele estava com a a bolsa cheia de moedas como nunca antes. Meus olhos brilharam. Foi o dia que mais demoramos a contar as moedas. Quando meu pai viu todas as moedas  [...] em grupos que somavam 1 real ele ficou feliz. Guardou as moedas, depois pôs a mão no bolso. Para meu primeiro irmão, 10 centavos, como sempre. Para o outro irmão, também 10 centavos. E quando chegou a minha vez, ele tirou uma reluzente moeda de 50 centavos e me deu. Para mim, significava que eu já era "grande" assim como meu irmão mais velho. Poucas vezes fui feliz como naquele dia. Minha existência se fez interessante. Pena que a moeda foi gasta depressa. Criança não tem paciência mesmo. "

Ganhei todos os pontos da questão com direito e elogio de professora. Ta aí, outro momento feliz.


segunda-feira, 22 de julho de 2013

Lar VII

    A Natália tem  fama de ser inconveniente. Ela rir desesperadamente e muito alto (ok, eu também faço isso às vezes), faz perguntas indiscretas e fica falando de coisas sem noção na frente das pessoas. Ela não tem jeito. Não adianta aconselhar: "Natália, na frente de fulano, não fala disso que ele não gosta". Quando o dito cujo aparece, depois de alguns instantes, lá está a Natália: "Fulano, a Marcela é tão besta que pediu para eu não falar sobre [o assunto proibido] contigo, olha!". Minha cara vai ao chão. Meu tio teve o maior trabalho de aquietar a cachorra e os filhotes no dia que nós fomos para um aniversário na casa dele. Mal a Natália chegou, foi mexer com os cachorros, espatifa-los pelo quintal. Minha cara vai ao chão pela segunda vez. 
   Mas não é de hoje que ela apronta dessas. Quando a minha mãe estava grávida do meu irmão mais velho, a Natália era bem pequena ainda. Ela ficava admirando a barriga da minha mãe. No dia que o meu irmão nasceu, foram deixar a minha mãe e o recém-nascido em casa. Quando a minha mãe desceu do carro, a Natália foi espiar. Logo deu falta da barriga. Ficou decepcionada. Com a cara mais triste do mundo, olhou para a minha mãe, para o bebê e disse: "Mããããããããee, cadê a barriga da senhoLa?". A minha mãe sorriu diante de tamanha inocência. A Natália, inconformada e inconveniente desde sempre, levantou o vestido da minha mãe na frente de todo mundo e meteu-se lá procurando a barriga fujona. A cara da minha mãe foi ao chão e continuou indo muitas vezes ainda...

domingo, 30 de junho de 2013

Mar III

Meu boneco de lata bateu a cabeça no chão...levou quase uma hora pra fazer a operação. 
Desamassa aqui  pra ficar bom...
Meu boneco de lata bateu as pernas no chão...levou mais de duas horas pra fazer a operação.
Desamassa aqui, desamassa ali pra ficar bom...
Meu boneco de lata bateu o coração no chão...levou mais de três horas pra fazer a operação.
Desamassa aqui, desamassa aqui, desamassa ali pra ficar bom...
Meu boneco de lata bateu os sonhos no chão...levou mais de uma vida pra fazer a operação.
Desamassa aqui, desamassa aqui,  desamassa aqui,  desamassa aqui,  desamassa aqui,  desamassa aqui...

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Lar VI

    A minha melhor amiga na minha infância foi a Tailane, ou Tatá, para os íntimos. Poucas são as lembranças que eu tenho da minha infância e que ela não está presente. Eram longas tardes fazendo roupas para bonecas, comida de mato, brincando de irmãs e a dupla "Márcia e Ângela"  - nossos nomes nas brincadeiras - sempre estavam prontas para a emocionante missão de matar um tal de Seu Joaquim, que como várias outras pessoas, só existia na nossa cabeça. O nosso local de brincar costuma ser o quintal da minha casa e a dispensa onde o meu pai guardava os pregos, martelo, tinhas, pincéis, essas coisas de conserto de casa.
    Um dia, eu e a Tatá éramos irmãs e morávamos juntas. A nossa casa era a dispensa. Justamente antes dessa brincadeira, meu pai pusera uma lata de tinta mal fechada em umas das prateleiras da dispensa. Brincadeira vai, brincadeira vem, eu bati sem querer na maldita prateleira e a tinha caiu em cima de mim e da minha amiga. Foi um chororô só. Ela preocupada da surra que ir sofrer se chegasse em casa toda azul e eu chorando porque o meu pai ia me matar. A brincadeira terminou, ela foi embora. eu estava parecendo a Mística. Depois do banho,vesti uma roupa bem fechada, me enrolei toda e fui para o quarto. Fiquei toda enrolada até dormir. Quando eu acordei, meu pai e meus irmãos assistiam TV sentados ao meu redor. Eu estava morrendo de medo e pensava em um plano para fugir dali. Ainda fingi estar dormindo por alguns minutos até que decidi me levantar e sair bem devagarzinho sem ninguém perceber que eu existia. Abri os olhos, me sentei na cama e na hora de levantar, meu irmão puxa a gola da minha blusa e pergunta: "Marcela, o que isso aqui azul em tu ?"

terça-feira, 18 de junho de 2013

Lar V

    A dona Auristela já era idosa em 1995. E não é "Estela", é "Auristela" mesmo. Uma viúva amiga da minha mãe que de vez enquando ia dormir na minha casa, caso ela tivesse alguma coisa para resolver. Não sei como e quando elas se conheceram, sei que a dona Auristela sempre ia lá em casa, desde o tempo que morávamos no sítio. 
    Ela chegava com uma bolsa muito simples, os cabelos longos e  grisalhos presos em um pedaço de pano. Falava dos filhos e sobre quem tinha morrido na comunidade que ela morava, um sertão no pé da serra.  Eu ficava observando a boca dela, mole pela ausência de dentes, e os olhos tão fundos que eu não saberia nem dizer a cor deles. Quando chegava a hora do Jornal Nacional, ela começava a cochilar e dizer que queria ir se deitar. Começava aí o meu desespero. A dona Auristela tinha um problema respiratório sério, acredito que era asma muito forte, então a minha mãe não podia coloca-la para dormir numa rede da sala, ela morreria de frio e poderia ter uma crise de asma muito séria. Então a minha mãe pegava um cobertor marrom, cheio de quadradinhos, sacudia e dava para Dona Auristela se enrolar. Ela entrava casa a dentro e ia para... a minha cama. Era o único lugar que ela podia dormir. Minha mãe não podia coloca-la para dormir com os meus irmãos e então sobrava para mim. Ela ia na bolsa, pegava uma vela, um terço e um fósforo. Colocava-os  em um tamborete e depois se deitava. Era sempre era assim. Eu deitava ao lado, toda espremida, maquinando maneiras de fazer com que ela pedisse para dormir em outro canto, não comigo. Fazia isso até que eu adormecia ao som dela coçando a garganta. Então às 4 da manhã, ela se levantava. Era a hora do terço. Ela rezava todos os dias, inclusive nos que ia dormir lá em casa. Depois do terço terminado, juntava  as coisas e saia. Sumia no meio da quase-manhã gelada que se faz na minha cidade. Nessas horas ela nunca tinha asma. 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Lar IV

    A Natália é, entre os meus irmãos, aquela que mais se parece com o meu pai. E é a que mais odeia ele. Até o barulho que ele faz com a boca quando termina de beber alguma coisa, a Natália faz igual. Além de gostar de programas de animais, principalmente os silvestres, ela sai procurando aquilo que deixou de ser feito. Se houver uma pilha de louças para lavar e eu esquecer de lavar uma xícara, ela faz o maior alarde. Igualzinho ao meu pai. E ainda tem as expressões. Tem texto que é a mesma coisa: "Sabe o que é isso? Língua!", "Deixe, viu, deixe...", "Marrapás!",entre outras.
    No entanto, meu pai nem sempre foi odiado. Ele já foi doce. Ele falava com a gente. Brincávamos. Ele era o boi e eu e os meus irmãos éramos os peões. Era muito divertido. Alguns dias ele ficava com o pescoço arranhado de eu fazer cócegas com as minhas unhas pequenas. Sem contar a divertida tarefa de contar as moedas dele quando ele chegava do trabalho, depois desse costume, ele ligava o rádio da FM Liberdade  para ouvir o programa do Seu Zé Marcelino. Todo dia ele trazia cartas do sertão para esse programa. Tinha cata da Canafístula, Marés, Viado Seco, Urubu, Vidéu.  Dia de domingo, ele sentava numa cadeira da sala para assistir ao "Viola, minha viola" e foi aí que eu odiei e amei Inezita Barroso. Ele puxava a orelha e dava carão, mas brincava muito. Todos os dias antes de dormir, ele gritava: "Maromba!" (era eu) e eu e minha mãe ficávamos mexendo no cabelo dele, até ele dormir. 
    Mas as coisas foram desandando e ele mudou muito. Não falava mais, nem brincava. Era sério e quando falava era apenas para reclamar ou dizer coisas ruins com a gente. Com o passar dos anos, ele se transformou em um monstro que eu morro de medo. Começamos a crescer e entender os problemas , vendo coisas erradas que ele fazia. Sofremos muito. As boas lembranças foram, ao poucos, sendo substituídas por gostos amargos. No entanto, seu sempre lembro dele olhando para a Natália e fico pensando, que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais..."

domingo, 2 de junho de 2013

Mar II

    A primeira vez que eu ouvi Djavan e parei para interpretar uma música dele foi em 1998. A Globo estava exibindo a novela "Meu bem querer" e a música da entrada dessa novela era uma música homônima cantada pelo Djavan. Eu já tinha assistido "Por amor", nessa novela Djavan cantava a belíssima música "Nem um dia", mas eu não entendia a letra direito na época. Eu fiquei encantada por aquela voz e pela letra da música. Intrigava-me a ideia de alguém "morrer de amor". Ficava me perguntando o que seria morrer de amor e como seria isso. Na abertura da novela passava também aqueles pintura (ou desenho?) que são feitos em recipientes de vidro, geralmente mostrando um ponto turístico. É uma arte muito conhecia na região litorânea do Ceará. Eu ficava olhando aquelas pinturas e escutando a música que me tocava profundamente. Lembro pouco da novela, mas sei que a trama se dava numa cidade chamada "São Tomás de Trás" e a trama envolvia histórias com fantasmas também. Eu era apaixonada por novelas e assistia todas com a minha mãe. 
    O que a minha cabeça de 7 anos não sabia era que um dia eu ia ter oportunidade de ver o dono daquela voz cantar aquela música de perto. Eu pensava que essas pessoas que cantam as músicas que passam na televisão eram de outro mundo ou que nunca viriam para um lugar tão longe. Foi então que ontem, 1º de junho, já muito rouca de cantar as músicas do CD Rua dos Amores, o Djavan já tendo agitado aquela casa de show lotada, começa a cantar: "Meu bem querer, é segredo é sagrado, está sacramentado em meu coração...". Eu me vi pequena, chamando a minha mãe para sentarmos porque já ia começar a novela das 7. Sentava no colo dela ou puxava uma cadeira para mim, e ficava ali, prestando atenção em tudo, encantava com aquela voz. Fiquei emocionada com a lembrança boa. E ontem, era aquela mesma voz de 15 anos atrás que me dizendo que agora eu sei o que é morrer de amor. 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Lar III

    Criança pobre mal sabe o que é ganhar um presente. Lembro das poucas vezes que eu ganhei algum presente quando eu era criança. Lembro que uma vez o meu pai foi para Canindé e trouxe uma conjunto de roupas brancas com um trançado preto e um par de óculos para mim. Para os meus irmãos foram dois bonecos em uma cavalo. Um ninja de preto e um índio americano. Eu acho até que nesse dia meu pai estava vestido com a blusa da TV Diário que ele tinha ganhado do ex-patrão dele. Ele chegou e nós saltamos  para pegar esses presentes, ainda morávamos na casa da minha tia e tínhamos acabado de nos mudar do sítio. 
   Outra vez, subiu um carro na rua, anunciando venda de cadeiras, mesas e outras coisas de plástico. Meu pai subiu o alto da Caixa d'Água para ver e eu fui atras - morrendo de medo da altura. Quando eu cheguei lá, meu pai começo a conversar com o homem e falava muitas coisas que eu não entendia. Eu só olhava para as coisas e ficava me imaginando com elas. Foi aí que o meu pai pegou uma cadeirinha vermelha e me deu: "Pega menina, vai pra casa". Peguei a cadeira como uma prêmio, desci o alto correndo e ignorando o medo, desci "nas carrera". Entrei em casa igual a um foguete, corri, quando cheguei na sala da geladeira, os pés da cadeirinha bateram na parede e fui arremessada para trás. Meu pequeno corpo foi jogado no chão e fiquei bem arranhada e meus dedos "escapelados". Me levantei, continuei correndo até o quintal, levantei a cadeira e disse: "Olha mãe, o que o pai comprou pra mim". Soltei a cadeira e comecei a chorar. 

domingo, 26 de maio de 2013

Mar I

    Ultimamente várias notícias de estupro dentro de carros na região Sudeste têm sido divulgados. Eu fico horrorizada. Já vivemos presos em casa - e eu digo isso porque quando estou em casa, tenho medo de abrir  até a janela - e eu fico angustiada toda vez que eu saio na rua. Eu me sinto numa selva cheia de predadores. E depois de 3 assaltos, eu simplesmente só penso em chegar logo em casa. Os crimes que acontecem nas cidades do Sudeste, chegam aqui também como se fosse uma espécie de "moda do mal".
    Há alguma semanas, eu estava voltando da faculdade: 23h, segunda-feira, Montese. Desço do ônibus e olho triste aqueles 4 quarteirões (aparentemente)desertos que eu preciso atravessar até chegar em casa. Vou andando e na primeira esquina o carro buzina atrás de mim, depois passa do meu lado e para. Lá de dentro uma voz masculina pergunta: "Você sabe como se chega ao Bairro de Fátima daqui?". Apesar de não parecer ameaçador, eu tremi. Fiquei nervosa e assustada, complemente diferente de como eu ficaria quando eu tinha acabado de mudar para Fortaleza, pois se fosse nessa época, eu tinha respondido com a maior solicitude do mundo. Não foi o que aconteceu. Eu apenas disse que não sabia, mas perguntei se ele sabia chegar no Bairro de Fátima pela Expedicionários e ele disse que sim. Eu falei então: "Pode ir direto nessa rua que lá na frente você pode dobrar a esquerda e você vai chegar na Expedicionários". O homem olha para mim e diz: "Você não quer entrar aqui não? Para me ajudar a chegar lá". Gelei. Disse que não. Ele insiste: "Poxa, seria tão bom se você entrasse aqui para me ensinar, estou perdido". Eu falei (menti) que já estava perto de casa, que se eu fosse deixar ele lá, eu ia voltar andando de muito longe. Ele diz "Tudo bem, vou tentar achar pelo GPS". Agradeceu e eu saí com o coração na mão, apressando o passo. Na minha cabeça, aquele homem ia voltar e me obrigar a entrar no carro. Pode ser que o sujeito fosse de bem mesmo, mas infelizmente estava amedrontada demais para ter tempo de analisar isso na hora. Só sosseguei quando cheguei em casa. Depois fiquei pensando: se ele tinha GPS, por que ele não tinha usado logo?

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Lar II


Dois costumes do interior eu aprendi desde cedo: independente da idade, irmãos mais velhos cuidam dos irmãos mais novos e o que a sua mãe fala, é verdade, não questione, apenas aprenda. Pois bem, depois que meu irmão mais novo nasceu, ganhei uma nova tarefa: cuidar dele. Então os meus 7 anos foram registrados pelo choro do meu irmão e pelas vezes que ele fez xixi em mim. Em um dia que eu tive liberdade, fui brincar com o meu outro irmão, o Marcelo. Eu peguei uma faca de mesa e comecei a fingir que ia machucar ele. Quando a minha mãe viu a cena, grito de onde estava: "Menina, deixa de brincadeira besta com faca! Senão o cão atenta e tu fura teu irmão". Fiquei com aquilo na cabeça. "o cão atenta e tu fura teu irmão... ","o cão atenta e tu fura teu irmão... ", "o cão atenta e tu fura...". 
Um certo dia a minha mãe mandou eu ir jogar as fraudas sujas do meu irmão no lixo. Na época, não tinha coleta de lixo de casa em casa, tínhamos que subir o alto da Caixa d'Água e colocar as sacolas dentro de um tambor. Lá vai a Marcela subindo o alto com um saco cheio de caca de neném. Quando eu cheguei perto do orelhão da Lêda, a sacola se rompeu, as fraudas saíram rolando rua abaixo e todo mundo começou a olhar para mim e rir. Fiquei muito triste e envergonhada. Larguei tudo e voltei para casa chorando. Entrei,  não falei com ninguém, passei na cozinha e peguei uma faca. Fui para o quartinhos dos fundos. Sentei numa cadeirinha e coloquei a ponta da faca na palma da minha mão, como se eu fosse fura-la. Depois de algumas horas, a minha mãe veio me procurar. "Menina, o que é que eu tá fazendo aí sentada com essa ponta de faca na tua mão?". "Estou esperando o cão vir me atentar". 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Lar I

    Minha mãe nunca foi lá a pessoa mais criativa do mundo para nomes. Basta observar o nome das minhas irmãs: Natália Cristina e Tereza Cristina. O nome do meu irmão é Marcelo - o meu Marcela - e o meu irmão mais velho se chama Antônio, mesmo nome do meu pai. Enfim, não é lá pessoa de pensar muito em nome. Em 1998 meu irmão mais novo nasceu, no dia 1º de julho - mês que nasceu todos os meus irmãos homens, falta de criatividade também no mês. Antes de ele nascer, a minha mãe já tinha escolhido um nome: João Marcos, "João" por causa da época junina e "Marcos" por causa do apóstolo. Acho que as vezes nem é falta de criatividade, é preguiça mesmo.
    Quando eu acordei nesse bendito 1º de julho, perguntei a uma das irmãs onde estava a minha mãe e ela disse que ela tinha ido buscar o bebê que ia ser meu irmãozinho. Já comecei não gostando desse sujeito meu irmão: onde já se viu? Me deixar sem mãe por uma manhã dos meus 7 anos! Algumas horas depois, a minha mãe chegou em casa com um bebezinho. Lá fui eu espiar o novo membro da família: olhos fechados, pele fina, boca escura, unhas grandes: horrível. O Marcelo, na época com 4 anos, olhou para nosso irmãozinho com uma cara de desprezo e disse: "Mãe, leva exi neném de volta que ele é muto feo. Vai ali naquela casa e tloca ele pelo neném bonito que tem lá". Falava o simplista Marcelo apontando para a casa da Dona Eliane, mal sabia ele que havia chegado o maior companheiro de aventuras que ele podia desejar.