domingo, 30 de junho de 2013

Mar III

Meu boneco de lata bateu a cabeça no chão...levou quase uma hora pra fazer a operação. 
Desamassa aqui  pra ficar bom...
Meu boneco de lata bateu as pernas no chão...levou mais de duas horas pra fazer a operação.
Desamassa aqui, desamassa ali pra ficar bom...
Meu boneco de lata bateu o coração no chão...levou mais de três horas pra fazer a operação.
Desamassa aqui, desamassa aqui, desamassa ali pra ficar bom...
Meu boneco de lata bateu os sonhos no chão...levou mais de uma vida pra fazer a operação.
Desamassa aqui, desamassa aqui,  desamassa aqui,  desamassa aqui,  desamassa aqui,  desamassa aqui...

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Lar VI

    A minha melhor amiga na minha infância foi a Tailane, ou Tatá, para os íntimos. Poucas são as lembranças que eu tenho da minha infância e que ela não está presente. Eram longas tardes fazendo roupas para bonecas, comida de mato, brincando de irmãs e a dupla "Márcia e Ângela"  - nossos nomes nas brincadeiras - sempre estavam prontas para a emocionante missão de matar um tal de Seu Joaquim, que como várias outras pessoas, só existia na nossa cabeça. O nosso local de brincar costuma ser o quintal da minha casa e a dispensa onde o meu pai guardava os pregos, martelo, tinhas, pincéis, essas coisas de conserto de casa.
    Um dia, eu e a Tatá éramos irmãs e morávamos juntas. A nossa casa era a dispensa. Justamente antes dessa brincadeira, meu pai pusera uma lata de tinta mal fechada em umas das prateleiras da dispensa. Brincadeira vai, brincadeira vem, eu bati sem querer na maldita prateleira e a tinha caiu em cima de mim e da minha amiga. Foi um chororô só. Ela preocupada da surra que ir sofrer se chegasse em casa toda azul e eu chorando porque o meu pai ia me matar. A brincadeira terminou, ela foi embora. eu estava parecendo a Mística. Depois do banho,vesti uma roupa bem fechada, me enrolei toda e fui para o quarto. Fiquei toda enrolada até dormir. Quando eu acordei, meu pai e meus irmãos assistiam TV sentados ao meu redor. Eu estava morrendo de medo e pensava em um plano para fugir dali. Ainda fingi estar dormindo por alguns minutos até que decidi me levantar e sair bem devagarzinho sem ninguém perceber que eu existia. Abri os olhos, me sentei na cama e na hora de levantar, meu irmão puxa a gola da minha blusa e pergunta: "Marcela, o que isso aqui azul em tu ?"

terça-feira, 18 de junho de 2013

Lar V

    A dona Auristela já era idosa em 1995. E não é "Estela", é "Auristela" mesmo. Uma viúva amiga da minha mãe que de vez enquando ia dormir na minha casa, caso ela tivesse alguma coisa para resolver. Não sei como e quando elas se conheceram, sei que a dona Auristela sempre ia lá em casa, desde o tempo que morávamos no sítio. 
    Ela chegava com uma bolsa muito simples, os cabelos longos e  grisalhos presos em um pedaço de pano. Falava dos filhos e sobre quem tinha morrido na comunidade que ela morava, um sertão no pé da serra.  Eu ficava observando a boca dela, mole pela ausência de dentes, e os olhos tão fundos que eu não saberia nem dizer a cor deles. Quando chegava a hora do Jornal Nacional, ela começava a cochilar e dizer que queria ir se deitar. Começava aí o meu desespero. A dona Auristela tinha um problema respiratório sério, acredito que era asma muito forte, então a minha mãe não podia coloca-la para dormir numa rede da sala, ela morreria de frio e poderia ter uma crise de asma muito séria. Então a minha mãe pegava um cobertor marrom, cheio de quadradinhos, sacudia e dava para Dona Auristela se enrolar. Ela entrava casa a dentro e ia para... a minha cama. Era o único lugar que ela podia dormir. Minha mãe não podia coloca-la para dormir com os meus irmãos e então sobrava para mim. Ela ia na bolsa, pegava uma vela, um terço e um fósforo. Colocava-os  em um tamborete e depois se deitava. Era sempre era assim. Eu deitava ao lado, toda espremida, maquinando maneiras de fazer com que ela pedisse para dormir em outro canto, não comigo. Fazia isso até que eu adormecia ao som dela coçando a garganta. Então às 4 da manhã, ela se levantava. Era a hora do terço. Ela rezava todos os dias, inclusive nos que ia dormir lá em casa. Depois do terço terminado, juntava  as coisas e saia. Sumia no meio da quase-manhã gelada que se faz na minha cidade. Nessas horas ela nunca tinha asma. 

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Lar IV

    A Natália é, entre os meus irmãos, aquela que mais se parece com o meu pai. E é a que mais odeia ele. Até o barulho que ele faz com a boca quando termina de beber alguma coisa, a Natália faz igual. Além de gostar de programas de animais, principalmente os silvestres, ela sai procurando aquilo que deixou de ser feito. Se houver uma pilha de louças para lavar e eu esquecer de lavar uma xícara, ela faz o maior alarde. Igualzinho ao meu pai. E ainda tem as expressões. Tem texto que é a mesma coisa: "Sabe o que é isso? Língua!", "Deixe, viu, deixe...", "Marrapás!",entre outras.
    No entanto, meu pai nem sempre foi odiado. Ele já foi doce. Ele falava com a gente. Brincávamos. Ele era o boi e eu e os meus irmãos éramos os peões. Era muito divertido. Alguns dias ele ficava com o pescoço arranhado de eu fazer cócegas com as minhas unhas pequenas. Sem contar a divertida tarefa de contar as moedas dele quando ele chegava do trabalho, depois desse costume, ele ligava o rádio da FM Liberdade  para ouvir o programa do Seu Zé Marcelino. Todo dia ele trazia cartas do sertão para esse programa. Tinha cata da Canafístula, Marés, Viado Seco, Urubu, Vidéu.  Dia de domingo, ele sentava numa cadeira da sala para assistir ao "Viola, minha viola" e foi aí que eu odiei e amei Inezita Barroso. Ele puxava a orelha e dava carão, mas brincava muito. Todos os dias antes de dormir, ele gritava: "Maromba!" (era eu) e eu e minha mãe ficávamos mexendo no cabelo dele, até ele dormir. 
    Mas as coisas foram desandando e ele mudou muito. Não falava mais, nem brincava. Era sério e quando falava era apenas para reclamar ou dizer coisas ruins com a gente. Com o passar dos anos, ele se transformou em um monstro que eu morro de medo. Começamos a crescer e entender os problemas , vendo coisas erradas que ele fazia. Sofremos muito. As boas lembranças foram, ao poucos, sendo substituídas por gostos amargos. No entanto, seu sempre lembro dele olhando para a Natália e fico pensando, que "ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais..."

domingo, 2 de junho de 2013

Mar II

    A primeira vez que eu ouvi Djavan e parei para interpretar uma música dele foi em 1998. A Globo estava exibindo a novela "Meu bem querer" e a música da entrada dessa novela era uma música homônima cantada pelo Djavan. Eu já tinha assistido "Por amor", nessa novela Djavan cantava a belíssima música "Nem um dia", mas eu não entendia a letra direito na época. Eu fiquei encantada por aquela voz e pela letra da música. Intrigava-me a ideia de alguém "morrer de amor". Ficava me perguntando o que seria morrer de amor e como seria isso. Na abertura da novela passava também aqueles pintura (ou desenho?) que são feitos em recipientes de vidro, geralmente mostrando um ponto turístico. É uma arte muito conhecia na região litorânea do Ceará. Eu ficava olhando aquelas pinturas e escutando a música que me tocava profundamente. Lembro pouco da novela, mas sei que a trama se dava numa cidade chamada "São Tomás de Trás" e a trama envolvia histórias com fantasmas também. Eu era apaixonada por novelas e assistia todas com a minha mãe. 
    O que a minha cabeça de 7 anos não sabia era que um dia eu ia ter oportunidade de ver o dono daquela voz cantar aquela música de perto. Eu pensava que essas pessoas que cantam as músicas que passam na televisão eram de outro mundo ou que nunca viriam para um lugar tão longe. Foi então que ontem, 1º de junho, já muito rouca de cantar as músicas do CD Rua dos Amores, o Djavan já tendo agitado aquela casa de show lotada, começa a cantar: "Meu bem querer, é segredo é sagrado, está sacramentado em meu coração...". Eu me vi pequena, chamando a minha mãe para sentarmos porque já ia começar a novela das 7. Sentava no colo dela ou puxava uma cadeira para mim, e ficava ali, prestando atenção em tudo, encantava com aquela voz. Fiquei emocionada com a lembrança boa. E ontem, era aquela mesma voz de 15 anos atrás que me dizendo que agora eu sei o que é morrer de amor.